O que levou a ANS a barrar a transferência da carteira da Amil? Mesmo provisória, medida adotada pela agência é simbólica

Jota:

“Em um curto comunicado, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) anunciou nesta segunda (4/4) a decisão cautelar determinando que a operadora Amil reassumisse a carteira de planos individuais vendida para a operadora APS.

Aguardado com atenção por consumidores, pelo mercado e também por defensores do direito do consumidor, o caso teve uma reviravolta que causou surpresa. Mesmo provisória, a medida anula duas operações. E uma delas já autorizada pela própria ANS.

Menos de 24 horas depois do anúncio, o diretor-presidente da agência, Paulo Rebello, justificou a decisão. A agência não estava voltando atrás. Dados considerados relevantes para a análise da transferência da carteira da Amil para APS não foram fornecidos, segundo ele.

“Havia questões e pontos importantes que o regulador precisava saber para tomar as decisões. Mas essas informações foram omitidas”, disse, durante um evento realizado em Brasília. “Faltou um pouco de lealdade com o órgão regulador”, completou.

Rebello classificou a decisão dos diretores como uma reparação de um erro de avaliação. Sem informações suficientes, não havia como avaliar adequadamente a operação. Portanto, o trato deve ser desfeito e a segurança de assistência dos 337 mil beneficiários dos planos individuais atingidos pela operação, retomada, até que a análise final seja concluída.

Mesmo provisória, a medida adotada pela ANS é simbólica. Seus reflexos vão muito além dos beneficiários que foram surpreendidos com a notícia de que passariam a ser atendidos pela APS, um grupo que tem como sócios a própria Amil e Santa Helena e responsável, até dezembro de 2021, por uma carteira de 11 mil clientes.

Num momento em que o mercado de saúde suplementar vive uma tendência de fusões, a ação da ANS pode significar um alerta para empresas que tenham interesse em seguir esse movimento.

A medida também pode amenizar as críticas que a ANS recebeu quando deu sinal verde para a transferência da Amil para a APS. Defensores de direitos do consumidor questionaram a decisão da agência desde o seu anúncio. Como permitir uma empresa operar uma carteira 30 vezes maior do que a habitual? A análise, diziam, foi feita muito rapidamente e não levou em consideração o risco para consumidores.

“Era claro que a operadora não tinha condições de assumir a nova carteira”, afirma Maria Stella Gregori, professora da PUC-SP e ex-diretora da ANS. Pouco depois da transação inicial, uma nova operação foi realizada. Cotas da APS foram transferidas para um grupo de investidores formado por Fiord Capital, Seferin & Coelho e Henning Von Koss.

Naquele momento, já eram inúmeros os relatos de usuários do plano que recorriam à Justiça, à ANS e a órgãos de defesa do consumidor com queixas de atendimento. O maior problema era a restrição da rede assistencial.

Quem busca um plano de saúde sabe o quanto a inclusão de um hospital de excelência ou de um serviço de diagnóstico bem conceituado tem impacto sobre o valor da mensalidade. Ao arcar com valores mais altos, esses consumidores têm expectativa de que o hospital escolhido estará lá, na lista de referência, para ser usado quando necessário.

A insegurança não estava restrita à redução da rede de assistência. Usuários temiam pela sobrevivência dos contratos. O receio era compartilhado por entidades de direitos do consumidor e especialistas que acompanham de perto a saúde suplementar. Havia o receio de que a estratégia fosse apenas uma forma de se desvencilhar de uma carteira pouco lucrativa.

Diante das queixas dos usuários e da pressão de órgãos de defesa do consumidor, a ANS suspendeu em fevereiro a transferência das cotas para o grupo de investidores. A responsabilidade do atendimento estava mantida com a APS.

Desde então, as empresas envolvidas na transação enviaram documentos para a ANS avaliar as condições das negociações. Foram 11 volumes. A equipe técnica da agência concluiu, ao analisar as informações, que, já na primeira transação, se sabia que a Amil e a APS deixariam de fazer parte do mesmo grupo econômico. Com isso, não havia como a Amil dar garantias em favor da APS.

A análise dos documentos deixou claro ainda que, já na primeira movimentação, o grupo sabia também para quem as quotas representativas do capital da APS seriam vendidas. “A agência não foi informada sobre a intenção de uma nova venda”, disse Rebello ao JOTA. A documentação também indica, segundo a ANS, que compradores das quotas da APS não teriam capacidade financeira suficiente para garantir o equilíbrio econômico da empresa.

Diante da tendência de concentração do mercado de saúde suplementar, o episódio ainda não concluído da transferência da carteira da Amil para APS traz a dúvida: consumidores estão protegidos para outras tentativas de fusões? Maria Stella avalia que as regras existentes hoje são suficientes para coibir abusos. “Mas as análises precisam ser feitas de forma adequada. Os processos de compra precisam ser meticulosamente analisados”, diz.

Rafael Robba, advogado especializado em saúde suplementar, avalia que consumidores no passado já foram penalizados com operações feitas de forma descuidada. “Não estamos falando de contratos comuns. Estamos falando da saúde das pessoas e, por isso, a atenção tem de ser redobrada.” Ambos ressaltam ainda a importância da transparência dos dados sobre as negociações.

O episódio chama a atenção também para outro ponto: a carteira de planos alvo da transação, de contratos individuais. “Não é à toa que empresas resistem em ofertar novos planos nesta modalidade. Eles são os únicos que têm reajustes definidos pela ANS”, observa Maria Stella. Ao longo dos anos, a participação desses contratos no mercado se reduziu e alternativas mais atrativas para empresas surgiram, como os planos por adesão.

Para integrantes do setor, o caso seria uma ótima oportunidade para refletir sobre mudanças na forma do reajuste destes contratos. Rebello disse que a ANS está aberta à discussão. Mas deixou claro que mudanças teriam de ser implementadas também na forma de reajuste dos demais planos. Como ele compara: são vasos comunicantes. De nada adiantaria mudar regras para uma parte do setor e manter o restante com normas desatualizadas

Maria Stella, por sua vez, diz ser contrária a alterações. “Recentemente, uma mudança na forma do cálculo do reajuste de planos individuais foi feita. Para resolver o problema, o ideal seria que todos os planos ofertados no mercado tivessem o reajuste definido pela ANS.”

JOTA procurou a Amil, mas a empresa não quis comentar.

Leia a íntegra através do Link: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-ligia-formenti/o-que-levou-a-ans-a-barrar-a-transferencia-da-carteira-da-amil-06042022?utm_campaign=jota_info__ultimas_noticias__destaques__05042022&utm_medium=email&utm_source=RD+Station